Nós, alimentados pelo cinema há mais de cem anos, com a formatação dos roteiros que aproveitavam as nossas fraquezas inerentes, como, e principalmente, a empatia, nos fazendo torcer por um protagonista que vive uma “agonia” (dai a palavra prot-agonista), nós que entrávamos no passado jurássico em salas escuras de cinema para “viver uma vidinha” ali projetada na tela passamos a ser facilmente iludidos por manobras também na diegese, na mimética evocado no roteiro do filme, do audiovisual e depois séries, novelas e por ai vai.
Antes do artigo apaixonado por cinema, quando algo te fizer sentido e te fazer cócegas na mente, já curte o post e já indica para aquele seu amigo, amiga, bebê reborn que ama cinema e análise de roteiros porque dai posto mais aqui.
O truque maneiro de Guillermo del Toro em “A forma da água”, com roteiro do próprio e da maravilhosa Vanessa Taylor (que, além de a indicação ao Oscar por A forma da água, também trabalhou em produções de destaque como “Alias” e “Game of Thrones”), por exemplo é fazer a gente primeiro acreditar que o protagonismo está sobre “o par romântico”, Elisa “Esposito” (nome não escolhido aleatoriamente) apaixonada pela Criatura descoberta no lodo petrolífero da América do Sul (também nada “sem querer aqui: Ah! Escolhe ai um bicho de qualquer lugar, uma criatura assustadora australiana, não precisava ser um assustador e perverso “monstro latino”). E lá fomos nós, inocentes, achando que assistiríamos uma história de amor cerceada por um inimigo insuportável, nojento, pestilento e intragável.
Bem, sempre digo aos meus alunos de Storytelling, Literatura de Ficção e Audiovisual é que se você “quer mesmo conhecer seu personagem”, preste atenção em seus diálogos” e que para escolher os movimentos de seu personagem dentro da história narrada você precisa saber até a cor do sapato que ele usa.
Dai volto eu para a sala de cinema, ali assistindo de boa “A forma da água”, confesso que meio achando devagar, até que um raio me atinge quando Strickland, chegando com um Cadillac V-8, bebedor de petróleo, até o escritório depois de comprá-lo numa concessionária. A história da “cor do sapato” aqui é quase coincidência porque o que me vez pasmar e falar “Caraca! O Strickland é o protagonista!” foi justamente quando o assunto da cor surge no roteiro. Em tese, esse é o momento em que o roteirista revela sua verdadeira intenção: mostrando quem realmente conduz a narrativa.
E em uma fala os roteiristas nos permitem deslindar a chave do roteiro todo.
A história é sobre Richard Strickland e sobre tudo de abjeto que ele representa.
Basta perceber uma coisa: Todos os personagens e eventos chave convergem para Strickland. Ele é um imã dos plots e subplots e da escolha de cada personagem e cada subtrama que habitará “A forma da água”.
Se essa virada de perspectiva te derrubou, imagine o que pode acontecer com leitores? Compartilhe este artigo com quem precisa enxergar roteiro, dramaturgia aplica à literatura de forma consciente, de outro jeito. Mesmo! Eu amos expor e explicar os fundamentos daquilo que faz uma história ser “irresistível”.
Afinal qual é a frase do roteiro que abre a caixa e deixa todas as ferramentas de dramaturgia expostas?
Assim que o “patrão” estaciona na base, um funcionário “x” vem e elogia o Cadillac imponente e sua cor “verde”.
Strickland, irritado, responde ao funcionário: “Não é um carro verde. É azul-petróleo.”
Petróleo, mano! O homem branco, extrativista, com a mão dilacerada pela fera que habitava os recônditos lamacentos de rio amazônico no Brasil, cara! (Tá, no filme não fala no Brasil exatamente, mas assim é e tudo o que gosto dar lastro, look at this...). Só para “defender” que a fera é brasileira, quando Strickland está voltando para o “compound” com o seu novíssimo Cadilac Azul-petróleo está tocando no rádio do moço “Chica, Chica, Boom, chic”, na voz da gloriosa e “invasora do withe man system” Carmen Miranda, a cantora portuguesa mais brasileira da galáxia! — NÃO EXISTE ESCOLHA POR ACASO EM ROTEIROS NARRATIVOS REPRESENTATIVOS INDÚSTRIAIS, acostumem-se a isso e chora menos.
Dai você pode querer evocar acaso ou arbitrariedade, mas a frase foi cingida, esculpida, lapidada para aparecer neste exato momento. Além de escritor de romances, sou roteirista, já trabalhei em uma coleção de produções e sei que mesmo para que um seja fotografado dizendo uma sentença como “É um carro azul petróleo”, uma fala de segundos, toda a produção precisou se movimentar, TUDO teve que ser feito para que a mimética do momento fosse capturada por uma lente. Então estavam lá, além de uns 20 extras envolvidos no segundo plano da sequência, atrás das câmeras estavam os câmeras, os loggers, o fotógrafo, os assistentes de fotografia, o diretor, o assistente de diretor, o diretor de platô, os eletricistas, os maquiadores, o serviço de catering, claquetista, iluminadores, os set rounders, enfim... uma fala, uma segundo, CUSTA MUITO DINHEIRO.
Vamos voltar ao “saiba a cor do sapato do seu personagem”. Quando Strickland (esse nome tem muito sobre o que se falar também) estaciona o bichão automotivo V8, 6,4 ali na garagem do complexo onde está aprisionada a Criatura encontrada no pântano de extração de petróleo, onde trabalha Elisa, que sofre de ausência de fala, temos também Zelda Delilah, outra subalterna de Strickland que trabalha nos serviços de limpeza como Elisa. Outra personagem importante, mas fora do complexo, é a esposa de Strickland, Elaine.
Então tudo ficou muito claro. Segundos atrás, quando Strickland está sendo seduzido pelo vendedor da Cadillac o vendedor diz: “Esse é um carro do futuro. Você é um homem do futuro. Você (merece) pertence a esse carro.” E está ai o foreshadowing para o grande engano, a grande ilusão desse homem branco norte-americano em decadência.
<div style="padding:56.25% 0 0 0;position:relative;"><iframe src="
" frameborder="0" allow="autoplay; fullscreen; picture-in-picture; clipboard-write; encrypted-media" style="position:absolute;top:0;left:0;width:100%;height:100%;" title="A forma da água - Strikiland compra o Cadillac Azul Petróleo"></iframe></div><script src="https://player.vimeo.com/api/player.js"></script>
Ele não é o futuro porra nenhuma.
A sua ferida contraída da mordida do “bicho” sulamericano é carregada de discurso. Esses “monstros” vindo da América Latina estão “comendo” vocês, entrando em suas instalações, entrando no prédio onde vocês trabalham, e vocês, crentes na merecida supremacia da raça branca, vocês, crentes na superioridade genética torcem a boca, retraem os lábios vendo “essa gentinha” participar do jogo (leia isso com a voz do presidente em sua cabeça).
Demograficamente a população latina nos Estados Unidos é hoje de 20%. Número que não vai parar de crescer nem um tiquinho nas próximas décadas independentemente das táticas terroristas do trumpismo em continuar a extraditar famílias e pessoas que não agradam mais o American Way Life Style.
Os diálogos, em particular, nos mostram, “removendo escamas”, mas dando camadas, qual é a verdadeira agonia pela qual nosso personagem passa, que dá voz, que dá caráter ao personagem. E, ao flutuarmos pelos 5 atos da narrativa damos a eles a oportunidade de “corrigir o caráter” (em termos de dramaturgia) ou, se afundar muito mais. Strickland se revela recorrentemente através de seus diálogos. Sua misoginia, seu complexo de superioridade, sua inaptidão à empatia, sua cegueira à decadência iminente, seu machismo exacerbado, seu racismo velado (talvez patente). É bem emblemático como “aula de diálogo através do agon” a cena-sequência aos iniciados exibida aos 26 minutos e 20 segundos de “A forma da água”. Está quase tudo ali.
Qualquer narrador, iniciante ou veterano tem muito a aprender com as palavras exemplarmente escolhidas para dar voz ao personagem que estão impregnando a tela e chegando aos ouvidos. Técnica brutal, mas de um resultado extremamente naturalizado. “É aquela pessoa falando, conversando, sendo, mas estritamente ligada ao agon”. É esse jogo que separa os grandes dos ingênuos dentro da análise da Indústria do Entretenimento, dentro das mesas das grandes editoras e dos executivos de aquisição de Propriedade Intelectual. “Eles sabem que a gente sabe e eles sabem o que eles querem para elevar as apostas”.
Strickland ainda tem um imenso “showcase” de terror para mostrar organicamente enquanto a trama se desenrola. Um começo ainda a demonstrar que “nada é ao acaso”, até o nome deste inimigo protagonista é justamente objeto de escolha, de manipulação. “Strickland”... que podemos separar em “strick-land” ou “strick land” e traduzindo ao português vamos encontrando resultados como “aquilo ou aquele” que “atinge a terra”, que “golpeia a terra”, que “danifica a terra”, que “acerta a terra” e mais uma coleção de interpretações. Personagem patético, crente de que controla as coisas, tem em primeiro plano seus dedos apodrecendo, “o pussy finger inclusive”, o tic-tac do relógio de que ele está acabando, ele está doente, ele e o que ele representa não sobreviverá ao contato com o que vem do lodo, os sul-americanos, os “não brancos”.
Dai vem a ligação do general perguntando dos dedos machucados de Strickland. Gente... O general pergunta “e ai, tudo bem?” e o Bolsonaro Strickland ri, dizendo que se feriu, mas que seu “dedo do gatilho” e seu “dedo da buceta” estão bons ainda... ainda.
Mais patética ainda é sua fruição erótica direcionada à Elisa, a nossa personagem sem voz. Precisa ser mais didático que isso? Um homem controlador que só consegue ter uma ereção, ter prazer, se imaginando tendo sob seu jugo uma mulher “sem fala”, sem cordas vocais, sem palavras. Curioso que em casa, com sua esposa ele não consegue funcionar sexualmente até que usa a mão podre tapa a boca da mulher e emula na esposa uma “coisa sem direito a fala”, “uma coisa muda”. Strickland e sua ingenuidade é uma criatura patética que pagará por sua “falha trágica”, o seu rompimento com o novo “metron”.
Bem, cheguei até aqui por conta de um diálogo “Não é verde. É azul-petróleo”. E com isso abri o guarda-roupas do protagonista Richard Strickland. O aponto como protagonista porque, apesar do par romântico, da peripécia, da meta... acontece que todos os outros elementos da narrativa convergem para esse ser ultrapassado que é Strickland.
Vale esclarecer que Strickland não é um “anti-herói” porque um anti-herói raiz, como Walter White de Breaking Bad, como Cruela de Vill de 101 Dálmatas, Coringa de Batman, aquela chata do caralho da Miranda Priestley feita pela divina Meryl Streep em “O diabo veste Prada” e outros que tais nos dão uma dor do passado, uma violência sofrida que justifica suas ações ao ponto de, na maioria da maioria das vezes, se não estamos ali na ponta do sofá torcendo com eles, ao menos nos empatizamos com seus traumas e compreendemos por que fizeram esse caminho até aqui. Já Strickland é uma alma doente, por mais empáticos que sejamos, ele é um ser intragável e elegível a pagar “o grito do bode” ao final do filme.
Vale muito assistir “A forma da água” novamente para ver essa questão de “caráter vazando em cada diálogo” e também vale dar aquele “coraçãozinho” para o seu escritor/roteirista favorito de Osasco e indicar o post para os aficionados por roteiro e estrutura. Agora que você desvendou ‘O protagonista tardio’, ajude a espalhar essa ideia: Assine minha newsletter e clique em ‘curtir’, repasse para a lista de roteiristas amigos e garanta sua vaga nos próximos insights semanais. Te espero lá!
Ahhhh! “A forma da água” me veio por muita afeição e paixão pela estratégia de “O protagonista tardio” como del Toro traz novamente em “Mama” (apesar dele ser produtor executivo). Acontece que somos uma comunidade aqui. Peça nos comentários para uma análise técnica de roteiro de algum filme que você curtiu. Sem julgamentos sobre gênero, temática, estilo, diretores... é pelo amor ao storytelling, a essa coisa tão humana que é contar histórias, mas usado em sua potência maior com teoria, técnica e prática desse artesanato que nos revela os ossos, os músculos e os nervos do que é contar uma história.
Com profundo amor a todos vocês apaixonados pela arte de inventar,
André Vianco (de Osasco).
Preciso assistir a Forma da Água e corrigir essa minha falha de caráter.
Esse tempo atrás eu estava assistindo O Macaco (The Monkey, 2025) e estava analisando como o protagonista é jogado de um lado ao outro em decisões severas, cada ponto de virada da história o protagonista é apresentado a uma escolha crítica.